sábado, dezembro 02, 2006
Polónio e outros calafrios
Que relação haverá entre o assassinato a tiro da jornalista Anna Politkovskaya, o envenenamento com polónio-210 do trânsfuga Litvinenko e o envenenamento, aparentemente mais “suave”, do antigo primeiro-ministro Igor Gaidar? Que relação existirá entre estes três crimes? Nada nos prova que exista alguma. Mais, seria espantoso se algum dia se descobrisse que tal relação existe. Mas, o certo é que não é preciso um grande inquérito para demonstrar que existem pelo menos dois pontos comuns entre essa jornalista, esse ex-espião e aquele que foi o primeiro chefe do governo da era pós-soviética. O primeiro é que todos os três são russos. O segundo é que cada um deles incarnava uma categoria socio-política que está longe de agradar a um poder tão autoritário como o de Vladimir Putin.Com os seus artigos sobre a guerra na Chechénia, Anna Politkovskaya incarnava os últimos resquícios da liberdade de imprensa na Rússia. Alexandre Litvinenko, que traiu o FSB, o antigo KGB de onde é oriundo o presidente russo, era um desses homens que sabem coisas demasiadas para que se lhes deixe presumir que podem impunemente andar por aí a falar à vontade em qualquer país estrangeiro. Quanto a Igor Gaidar, o pai das privatizações e da terapia de choque, era uma das poucas figuras da oposição ― liberal, neste caso ― que ainda se podia dar ao luxo de dizer o pensa da evolução da política e do poder russos.
Ter-se-á pois querido aterrorizar pelo exemplo esses três grupos de desmancha-prazeres, pese embora isso não ser suficiente para demonstrar que os três crimes levam a assinatura dos serviços de Putin. Mas não é menos verdadeiro, primeiro, que a análise política desses crimes sucessivos é extremamente inquietante; segundo, que o inquérito sobre o assassinato de Anna Politkovskaya não avançou nem um milímetro; terceiro, que também ela tinha sido vítima de um misterioso envenenamento, muito parecido com o que acaba de atingir Igor Gaidar; quarto, que apesar das revelações da Margarida ― de duvidosa plausibilidade ― não deixa de ser uma extraordinária coincidência o facto de os vestígios de polónio-210 terem sido encontrados, pela polícia britânica, nos dois aviões que efectuam a ligação Londres-Moscovo; quinto, que também o veneno administrado a Igor Gaidar não deve ser daqueles fáceis de encontrar na farmácia da esquina, pois ainda nem sequer se descobriu de que substância se trata; sexto, que o Daily Telegrah acaba de publicar extractos de um documento que acusa os serviços secretos russos e um grupo de veteranos denominado “Dignidade e Honra” [sic], dirigido pelo coronel Valentin Velichko, de terem querido matar várias pessoas consideradas perniciosas para os interesses russos...
Pode também acontecer que toda esta construção funérea Politkovskaya-Litvinenko-Gaidar não passe de uma cabala organizada por um dos clãs do Kremlin, destinada a comprometer Putin aos olhos dos seus colegas e da opinião ocidental, ao criar a impressão que o seu regime está a efectuar uma espécie de limpeza de trincheiras pré-eleitoral.
Em resumo, este complicado enredo não permite designar um culpado. Mas não há dúvida que respiraríamos muito mais aliviados e a Rússia pareceria muito menos aterradora se os seus prestigiosos serviços de inquérito conseguissem tornar claros estes enigmas deveras arrepiantes.
:: enviado por JAM :: 12/02/2006 05:07:00 da tarde :: início ::
3 comentário(s):
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Por acaso faz amanhã 15 dias que acompanhei o aparecimento dessa história, que até me divertiu bastante. Eu explico: levantei-me cedo no domingo, tinha a TV ligada na BBC e deviam ser umas 7h30 quando ouvi pela primeira vez a história. Os filmes que a acompanhavam mostravam o Litvinenko acompanhado pelo Berezovsky e por Akhmed Zakayev infame porta-voz dos chechenos (quando do refém das crianças de Beslan). Entretanto todas as meias horas depois a história era “apurada”, primeiro com “reportagens” à porta do hospital, depois com entrevistas a esses e outros “amigos” do Litvinenko, repetidos ad nauseum. Por volta das 12h00 apercebi-me que a Sky News tinha agarrado a história, esta com os “especialistas” no estúdio. Depois de almoço também já a Euronews a agarrara e só à noite é que a CNN o fez. Têm sido praticamente noticiários inteiros, principalmente a Sky agora, mas nenhuma das outras largou ainda a história. Ontem, por exemplo, a Sky praticamente não noticiou mais nada.De , em dezembro 02, 2006 9:52 da tarde
Ao princípio, cada vez que falavam do Litvinenko tinham que invocar a Anna Politkovskaya, desde a morte do Litvinenko, acompanham sempre ou com a Anna ou com o Gaidar. Ao princípio raramente falavam do Scaramella, agora é o pão-nosso de todas as meias-horas.
Claro que a história me divertia porque já tinha visto exactamente o mesmíssimo “fabrico” vezes sem conta, por exemplo quando da “preparação psicológica” para a 1ª guerra em directa da CNN no Iraque (Bush pai); depois quando da guerra contra a Jugoslávia (Clinton), mais recentemente quando da “libertação” de Cabul pelo Simpson da BBC, ou de Bagdad pelo repórter da Fox. Aliás nesse domingo de há duas semanas atrás só errei quando pensei que ia aparecer a Redgrave amiga do Zakayev, que até à data ainda não apareceu, mas que ainda não desesti de a ver…
Mas tenho também acompanhado no Antiwar.com que tem tido desde praticamente o início uma coluna com todas as notícias do dia e já teve 2 ou três artigos do Justin Raimondo de que lhe deixo um link para o primeiro:
http://antiwar.com/justin/?articleid=10049
AH! E lembro-me agora que ao princípio o “veneno” era o tálio e metia um doutor inglês e tudo que foi “herói” durante uns dias até descobrirem que afinal não era tálio mas o polónio. Claro que quando o tálio era o culpado ao lado da do Litvinenko e da Politkovskaya aparecia sempre também a história do Yushchenko da Ucrânia, mais a respectiva “história”. Se calhar é por ter visto tantas histórias que esta de facto ainda não me assustou. E também porque quando ela começou pensei como era conveniente para o Blair na altura de partida para o Paquistão e bastante aflito a tentar desmentir a boutade sobre o Iraque a que anuíra em entrevista à Al-Jazira… -
E esqueci-me que o Gaidar adoeceu na Irlanda e foi-se tratar para um hospital em Moscovo e que a filha dele foi à TV "ilibar" o Kremlin... E desde ontem que nas quatro manas (BBC, CNN, Sky, Euronews) se deixou de falar do Berezovsky e do Akhmed Zakayev e dos outros russos "amigos" que na primeira semana tinham de perorar todas as meias horas.De , em dezembro 02, 2006 10:14 da tarde
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Mais duas pistas para seguir a história. Esqueci-me de dizer que quando Litvinenko faleceu e quando lançaram a “operação” da carta-acusação do falecido, quem traduziu a carta foi um tal de Goldfarb apresentado como o tradutor do pai de Litvinenko. Durante dois ou três dias este Goldfarb foi vedeta nomeadamente nos estúdios da BBC e da Sky, sempre na condição de amigo da família. É pelo New York Times que se sabe mais alguma coisinha dele.De , em dezembro 03, 2006 11:03 da manhã
De qualquer modo parece-me que a história já deu o que tinha a dar. Ontem à noite, nas quatro manas, já aparecia pelo meio doutras notícias ou nem sequer aparecia. E hoje de manhã na Sky, os dois jornalistas convidados para fazer a revisão dos media já brincavam dizendo que esta é das histórias onde nunca se saberá ao certo o que aconteceu. Eles lá sabem.
http://fairuse.100webcustomers.com/fairenough/nyt671.html
http://www.timesonline.co.uk/article/0,,13509-2482861,00.html