terça-feira, julho 17, 2007
José Saramago
"O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia, Azinhaga de seu nome, na província do Ribatejo. Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro. No Inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animalzinhos do enregelamento e salvava-os de uma morte certa. Ainda que fossem gente de bom carácter, não era por primores de alma compassiva que os dois velhos assim procediam: o que os preocupava, sem sentimentalismos nem retóricas, era proteger o seu ganha-pão, com a naturalidade de quem, para manter a vida, não aprendeu a pensar mais do que o indispensável. Ajudei muitas vezes este meu avô Jerónimo nas suas andanças de pastor, cavei muitas vezes a terra do quintal anexo à casa e cortei lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à grande roda de ferro que accionava a bomba, fiz subir a água do poço comunitário e a transportei ao ombro, muitas vezes, às escondidas dos guardas das searas, fui com a minha avó, também pela madrugada, munidos de ancinho, panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois haveria de servir para a cama do gado. E algunas vezes, em noites quentes de Verão, depois da ceia, meu avô me disse: "José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira.[...]"
in http://nobelprize.org/nobel_prizes/literature/laureates/1998/lecture-p.html
Ora aqui está um texto a que regresso, de quando em vez, para apreciar como se pode ser grande.
José Saramago escandalizou alguns portugueses ao propor que nos integremos numa Ibéria. Digo alguns porque é com frequência que ouvimos dizer que mais valia entregarmos isto aos espanhóis. São frases de desalento face à mediocridade dos nossos governantes, são desabafos... Veremos se, com a nova e camuflada constituição europeia, não se confirmarão as vantagens de inclusão num país que fosse demograficamente mais relevante. Quando o tratado for aprovado no nosso parlamento, voltaremos a estas ideias seguramente.
in http://nobelprize.org/nobel_prizes/literature/laureates/1998/lecture-p.html
Ora aqui está um texto a que regresso, de quando em vez, para apreciar como se pode ser grande.
José Saramago escandalizou alguns portugueses ao propor que nos integremos numa Ibéria. Digo alguns porque é com frequência que ouvimos dizer que mais valia entregarmos isto aos espanhóis. São frases de desalento face à mediocridade dos nossos governantes, são desabafos... Veremos se, com a nova e camuflada constituição europeia, não se confirmarão as vantagens de inclusão num país que fosse demograficamente mais relevante. Quando o tratado for aprovado no nosso parlamento, voltaremos a estas ideias seguramente.
Etiquetas: Ibéria, José Saramago
:: enviado por RC :: 7/17/2007 10:15:00 da manhã :: início ::
1 comentário(s):
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Lembrei-me do grande escritor Alves Redol e da sua obra Gaibéus quando, há dias, a Televisão da Galiza noticiou que os trabalhadores da região se manifestavam, com veemência e alvoroço, contra os milhares de portugueses que se ofereciam para trabalhar por metade e, até, por um terço dos salários ali auferidos. [...] Os nossos dirigentes políticos não possuem talento nem grandeza para criar condições de vida aceitáveis. A sua mediocridade exultante é típica do populismo autoritário, que deixa de lado as mais vivas expressões da realidade social. Portugal é, de novo, um país gaibéu.De , em julho 19, 2007 12:14 da manhã
[Baptista-Bastos, DN]
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